Ver Second Life é uma experiência quase indescritível. Mesmo assim, urge fazer uma tentativa e o melhor será recorrer a uma série de analogias cuidadas. Imaginem então que estão a ver o último filme de Alexandre Valente (último apenas cronologicamente e não necessariamente o último que produzirá na vida, com grande pena) na Faixa de Gaza durante um bombardeamento israelita. Por exemplo, num multiplex em que todas as outras salas passam Corão, o Filme, em versões com e sem fundamentalismo. Caem mísseis lá fora e as explosões fazem estremecer o edifício e levantam nuvens de pó que preenchem o espaço como uma névoa irrespirável. Mas não é tudo. Quando se sentam, descobrem que o jardim zoológico local resolveu usar o cinema como abrigo para os animais e que, atrás da vossa cadeira, estão instalados três jaguares famintos e nervosos, acorrentados com folga suficiente para lhes permitir morder e arranhar-vos a nuca. O melhor seria mudarem de lugar, mas alguém barrou o assento com cola acrílica como brincadeira de mau gosto. Reparam ainda que a fila da frente está inteiramente ocupada por zombies desesperados por miolos frescos e, a qualquer momento, poderão ultrapassar a rigidez cadavérica e voltar a cabeça para trás. Alguém ao fundo da sala morre de ébola (com tempo para dizer "ai que estou a morrer de ébola" em português corrente antes de tombar fulminado), deixando cair sobre os estofos o charuto malcheiroso que fumava e ateando um incêndio.
É neste momento que o filme começa. E, dez minutos depois, percebem que o que está no ecrã é mil vezes mais desagradável do que tudo o que vos rodeia. Porquê? Para começar, quase não há sinais da história prometida na campanha promocional (Nicholas, um homem de nacionalidade indefinida acaba de morrer e reflecte como narrador sobre o rumo que teria levado a sua vida se tivesse optado por outro caminho num momento fulcral). Em vez de enredo, existem apenas lampejos esporádicos de uma direcção vaga em que o filme pretende cambalear, sem nunca conseguir. A realização é anedótica. Os realizadores fazem questão de aplicar todos os truques do manual nos momentos menos adequados e com a menor eficácia possível, como uma criança que brinca com uma caixa de ritmos. Um tamborzinho ali, um clarinete acolá, uma sequência de baile com lasers e luzes estroboscópicas, enriquecida com toques sinistros ao piano e máscaras venezianas dignas de um Kubrick à portuguesa. As originais opções de montagem conseguem a proeza de tornar quase incompreensível uma história que parece ter sido criada do princípio ao fim durante visita do argumentista à retrete (visita que nem precisou de ser particularmente demorada), com a colagem tosca de cenas das duas vidas alternativas do protagonista sem qualquer preocupação em conseguir uma transição fluida (num plano, Nicholas inala um pó branco suspeito da barriga activista de Sandra Cóias e, no seguinte, discute vinhos com Nicolau Breyner, pai cego da sua namorada italiana alternativa, uma espécie de Don Corleone com atraso mental severo).
Os diálogos não seriam mais ridículos se tivesse sido permitido a Luís Figo (com a sua estreia mundial no cinema) escrevê-los. Aliás, até prova em contrário, nada garante que não tenha sido precisamente isso a acontecer. E as personagens não existem, sendo substituídas por um bestiário de actores reles e apresentadores de televisão vestidos com fatiotas inusitadas: Paulo Pires como toureiro, Pêpê Rapazote como GNR, José Carlos Malato como inspector, Liliana Santos como badalhoca, Fátima Lopes como Fátima Lopes (umas mais inusitadas do que outras). Depois de uns setenta minutos de filme, parece haver uma tentativa de rematar com um final surpreendente, mas não se percebe muito bem se assim é porque a câmara não pára de girar em torno dos actores nas cenas cruciais e é difícil tecer considerações críticas quando se tenta conter o enjoo. Nada se aproveita então? Não é bem assim. Há Ruy de Carvalho a interpretar um clone de Karl Lagerfeld. Há Cláudia Vieira a tentar representar em italiano (sim, aparece em roupa interior e até sem ela; descansem os fãs dos seus dotes dramáticos alimentados a silicone). E há a mancha no ecrã, possivelmente de refrigerante, que fazia lembrar um bando de gansos quando olhada de certo ângulo. Se o ecrã do vosso cinema não tiver a referida mancha, lamento muito.
É neste momento que o filme começa. E, dez minutos depois, percebem que o que está no ecrã é mil vezes mais desagradável do que tudo o que vos rodeia. Porquê? Para começar, quase não há sinais da história prometida na campanha promocional (Nicholas, um homem de nacionalidade indefinida acaba de morrer e reflecte como narrador sobre o rumo que teria levado a sua vida se tivesse optado por outro caminho num momento fulcral). Em vez de enredo, existem apenas lampejos esporádicos de uma direcção vaga em que o filme pretende cambalear, sem nunca conseguir. A realização é anedótica. Os realizadores fazem questão de aplicar todos os truques do manual nos momentos menos adequados e com a menor eficácia possível, como uma criança que brinca com uma caixa de ritmos. Um tamborzinho ali, um clarinete acolá, uma sequência de baile com lasers e luzes estroboscópicas, enriquecida com toques sinistros ao piano e máscaras venezianas dignas de um Kubrick à portuguesa. As originais opções de montagem conseguem a proeza de tornar quase incompreensível uma história que parece ter sido criada do princípio ao fim durante visita do argumentista à retrete (visita que nem precisou de ser particularmente demorada), com a colagem tosca de cenas das duas vidas alternativas do protagonista sem qualquer preocupação em conseguir uma transição fluida (num plano, Nicholas inala um pó branco suspeito da barriga activista de Sandra Cóias e, no seguinte, discute vinhos com Nicolau Breyner, pai cego da sua namorada italiana alternativa, uma espécie de Don Corleone com atraso mental severo).
Os diálogos não seriam mais ridículos se tivesse sido permitido a Luís Figo (com a sua estreia mundial no cinema) escrevê-los. Aliás, até prova em contrário, nada garante que não tenha sido precisamente isso a acontecer. E as personagens não existem, sendo substituídas por um bestiário de actores reles e apresentadores de televisão vestidos com fatiotas inusitadas: Paulo Pires como toureiro, Pêpê Rapazote como GNR, José Carlos Malato como inspector, Liliana Santos como badalhoca, Fátima Lopes como Fátima Lopes (umas mais inusitadas do que outras). Depois de uns setenta minutos de filme, parece haver uma tentativa de rematar com um final surpreendente, mas não se percebe muito bem se assim é porque a câmara não pára de girar em torno dos actores nas cenas cruciais e é difícil tecer considerações críticas quando se tenta conter o enjoo. Nada se aproveita então? Não é bem assim. Há Ruy de Carvalho a interpretar um clone de Karl Lagerfeld. Há Cláudia Vieira a tentar representar em italiano (sim, aparece em roupa interior e até sem ela; descansem os fãs dos seus dotes dramáticos alimentados a silicone). E há a mancha no ecrã, possivelmente de refrigerante, que fazia lembrar um bando de gansos quando olhada de certo ângulo. Se o ecrã do vosso cinema não tiver a referida mancha, lamento muito.
Classificação:
Second Life
De: Miguel Gaudêncio, Alexandre Valente
Com: Piotr Adamczyk, Lúcia Moniz, Paulo Pires
Origem:
Ano: 2009
8 comentários:
E a cena do cadáver na piscina à Sunset Boulevard?
À Sunset Boulevard se alguém refizesse o filme com figuras feitas de bosta. Só assim aceito a comparação. Negócio fechado?
Eu não te conheço? Tu não és o artista formerly known as Logan?
NEGÓCIO FECHADO!
Pá, Salustio...
Eu não vi o filme, nem quero ver. Mas o facto de um gajo como tu se sujar ao ponto de pagar para ir ao cinema ver o filme para fazer a crítica, é mais ou menos como o Erwin Rommel andar no Sahara a espetar um pau na areia à procura de minas.
Ou o Tolstoi ler livros da M. Rebelo Pinto para a secção da crítica literária no pasquim local.
Estás a brincar? Fartei-me de rir. Quem dera muita comédia.
Se tiveres em conta que a nova tendência do cinema português é ir por aí (onde quer que "aí" seja), perdes logo a vontade de rir, não?
Digo eu...
Eu não. Pessoalmente, sou pelo caos.
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