29.1.14

Golpada Americana

Depois de ter feito filmes com algum interesse (por exemplo: Three Kings, I Heart Huckabees ou The Fighter), David O. Russell parece ter descoberto um gosto especial pela chochice, rendendo-se a ela sem resistência visível. Silver Linings Playbook era um filme que se via bem e não passava muito disso, mutilado por uma chochice incurável imposta pelo enredo e que nenhum dos desempenhos competentes dos atores conseguiu minorar, sendo (talvez por isso mesmo?) louvado até à exaustão como um dos melhores do ano.

Golpada Americana, noutro género e num tom muito diferente, é um filme igualmente chocho. Talvez mais ainda porque a chochice se torna mais grave num filme sobre vigaristas da era do Disco do que numa história de redenção amorosa entre doentinhos da cabeça. Algo de muito grave se passará no cinema quando um realizador acredita que está a pôr no ecrã uma história cheia de ramificações sinuosas, com personagens complexas e multidimensionais, e o resultado final acaba por saber a requentado.

Duas horas depois do início da Golpada, olhamos para os cento e vinte e tal minutos de vida que lhe dedicámos e refletimos. A história do casal de vigaristas dotados para a vigarice, do polícia demasiado ambicioso e do político corrupto, nos moldes em que nos é apresentada, poderia ser espremida com jeito e daria sumo suficiente para encher com conteúdo válido meia hora de um episódio televisivo. Ou poderia ter sido mastigada de outra forma (possivelmente por outro realizador) e ter sido um excelente filme.Quanto ao resto, há o esforço do realizador para mostrar um virtuosismo que lhe escapa e há os esforços dos atores para fazerem o melhor que podem enquanto vão piscando o olho a galardões. Amy Adams e Bradley Cooper vão bem, Christian Bale não vai mal, Jeremy Renner faz o que pode com o que tem (não é muito) e Jennifer Lawrence não faz praticamente nada. E também não precisa porque o mundo parece mais que disposto a premiar pela banalidade uma atriz muito promissora, tentando assegurar que se manterá banal durante o resto da  carreira. Esperamos que não deixe.

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A Vida Secreta de Walter Mitty

Um daqueles casos incompreensíveis de filmes que se tornam alvo do desagrado da crítica internacional sem que se perceba exatamente o motivo, A Vida Secreta de Walter Mitty acaba por surpreender muito quem se deixar influenciar pelas opiniões negativas e entrar na sala à espera do pior. Esta segunda adaptação ao cinema do conto homónimo de James Thurber afasta-se do tom de comédia technicolor da adaptação de 1947, com Danny Kaye, e carrega na subtileza, transformando-se numa espécie de elogio fúnebre à imprensa convencional.

O protagonista, interpretado por um Ben Stiller também encarregue da realização, é um funcionário do arquivo fotográfico da Life, em pleno processo de extinção da revista, que compensa a sua timidez patológica e a vida sensaborona que leva com fantasias heroicas exuberantes até ao dia em que o desaparecimento de um negativo o força a deixar a carapaça e a fazer-se ao mundo.

Originalmente, o papel principal foi pensado para Jim Carrey e chegou a estar entregue também a Sacha Baron Cohen. Talvez tenha sido melhor assim. Mesmo sendo capaz de um memorável Zoolander, noutro filme realizado por si, Ben Stiller consegue uma contenção e uma fragilidade em Walter Mitty que, salvo rasgos de génio, não seriam alcançáveis por Carrey ou por Cohen e que conferem ao protagonista uma pacatez contrastante com o exotismo dos cenários e com o delírio dos acontecimentos que lhe assenta muito bem.

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O Lobo de Wall Street


Há em O Lobo de Wall Street muito de Goodfellas. Qualquer coisa na estrutura narrativa e na forma como a desprezível personagem principal vai relatando a ação. Talvez seja intencional. Talvez Martin Scorsese tenha querido tornar um filme sobre os jogos financeiros reprováveis de Wall Street parecido com um filme sobre mafiosos, povoando-o com personagens igualmente decalcadas de figuras reais e, sem grande esforço, ainda mais repelentes, faltando-lhe aquela espécie de ingenuidade quase enternecedora (o “quase” muito sublinhado) de Henry Hill e dos seus colegas de profissão. Ou talvez a semelhança seja involuntária e inconsciente. Não importa muito. Mais do que a intenção do realizador, importa que a história de Jordan Belfort seja um filme muito irregular. Arranca com uma força que dá esperanças a quem espera ver em Leonardo DiCaprio um sucessor à altura de Ray Liotta, mas não demora a abrandar, a dar passos trôpegos e, neste ou noutro momento, quase a cair no chão. Há bons momentos em número suficiente para manter o ânimo (o filme seria melhor se fosse menos longo), mas também há momentos mais atabalhoados, arrastados e, à falta de melhor palavra, aborrecidos. Os desempenhos competentes mas em piloto automático de DiCaprio e do restante elenco não fazem grande coisa para compensar e (uma daquelas coisas que não acreditava vir a dizer um dia) a breve aparição de Matthew McConaughey deixa vontade de que tivesse sido menos breve.

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12 Anos Escravo



A ideia original era escrever qualquer coisa bem-disposta sobre o filme e, mesmo sabendo que era um retrato realista da degradação humana mais vil, acreditei que conseguiria. Mas estava enganado. 12 Anos Escravo é uma espécie de Django ao contrário. No filme de Quentin Tarantino, o escravo vê-se libertado por um acaso do destino e decide aplicar-se na reparação dos males que lhe foram feitos pelos brancos maus. No filme de Steve McQueen (o outro Steve McQueen, não o das perseguições a alta velocidade por São Francisco abaixo), Solomon Northup começa livre, vê-se escravizado por um acaso bastante sacana do destino, e mostra-se empenhado em lutar para reconquistar a liberdade perdida.

Pelo menos até ao primeiro espancamento. Depois disso, as ganas justiceiras passam-lhe e resigna-se a ir sobrevivendo como pode. Como pessoa branca portuguesa, sabendo-se que Portugal é um país que não tem quaisquer culpas no cartório na questão da escravatura no Novo Mundo (estou a escrever isto com o boné vermelho do sarcasmo enfiado na cabeça), fica-se com um buraco no estômago e começa-se a ver todos os brancos com a mesma cara odiosa e a mesma atitude repelente. Seja o terrível Edwin Epps de Michael Fassbender, o miserável William Ford de Benedict Cumberbatch ou até o solidário (mas não em demasia) carpinteiro itinerante de Brad Pitt.

Fica-se também com vontade de estabelecer um paralelo com outro filme recente sobre a questão racial na história americana, uma coisa chamada O Mordomo com Forest Whitaker, que nos apresenta o outro lado, o lado mais simpático, o do negro que parte da adversidade e consegue triunfar pelo seu esforço e retidão, tornando-se o mais importante criado do país. Em 12 Anos Escravo, não há moral da história nem triunfo na adversidade, mesmo com o fim da escravidão do protagonista implícito no título. Somos conduzidos pela mão numa visita a uma galeria de horrores reais com “História  Verídica” escrito sobre a porta em letras luminosas e permite-se-nos liberdade suficiente para chegarmos a conclusões, se acharmos que são necessárias.

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